Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo:
O artigo aborda a criação (e, bem entendido, a leitura) de textos literários em computadores e redes. O autor ensaia pensar a apropriação do hipertexto enquanto característica da máquina, para compreender como se poderá imaginar a criação literária dos anos vindouros, em que a distância entre a escrita no papel e a escrita no monitor não cessará de aumentar.
Résumé:
L'article porte sur la création (et, bien entendu, la lecture) sur moyen informatique, à l'égard des textes littéraires. L'auteur essaie de penser l'appropriation de l'hypertexte en tant que caractéristique de la machine pour comprendre comment peut-on penser à la création littéraire dans les années qui viennent, où le décalage entre l'écriture sur papier et l'écriture sur l'écran ne cessera d'augmenter.
Na literatura, entre o facto e o fato (tomo o vernáculo aos portugueses, para uso que se justificará logo a seguir), há muito mais tecido do que se pode supor à primeira vista. Há no texto um deleite que se dá à fruição, leitura construída no imediato do evento -- no calor do facto literário --, como prazer ou gozo (ou, nos casos extremos, aversão também extrema, ou ainda, o pior dos males, a indiferença). Há também, no texto, prazeres outros, escondidos nos hábitos com que vestimos o despudor da leitura prazerosa, no sistema que sobrepomos à busca desinteressada e interessante do literário. Ao facto da arte, artefato evidente dado à leitura imediata, sobrepõe-se o fato da arte, o discurso com que o leitor (o crítico que todos somos) busca organizar sua razão do texto.
E com que roupa vestiremos o artefato literário, numa época em que ele desfila em roupagens outras, nessa época em que o texto literário se despe das pompas de outrora -- arco-íris feito do preto-da-tinta-no-branco-do-papel --, para ressurgir ainda mais pleno no plano da tela do computador (artefato insinuando artemáquina)?
A tecnologia, essa que planifica o texto na tela, nos dá a ver novos pensares e novos criares, adornando a arte literária de originais vestes. Todavia, que não se suspenda o tempero inevitável do receio: na tela, vamos encontrar escrínio onde riquezas outras e várias se mostram, ou vamos enfrentar desagradável Caixa de Pândora com seus recheios inesperados?
A entronização da tecnologia, com seu séquito de máquinas e códigos, parece estabelecer uma fratura intransponível entre a antiga forma de veiculação da literatura -- hábitos aos quais já estávamos habituados -- e essa expressão contemporânea, criação maquinal que nos bafeja no rosto o hálito do absolutamente novo. Hálito que pode nos entorpecer a lembrança e os valores de antes, nos fazer esquecer o gosto do passado: Le Roi est mort ! Vive le Roi !
No lado do criador -- aquele que gera e lustra sua escrita --, a artemáquina parece impor uma objetivação total do texto: máquina de criar linguagens, mathesis universalis na ponta dos dedos e na conta da programação, criatividade que abre mão do útero virtual que se dava em cada espírito artístico, para brotar de útero lógico-automático: logomática arte. E na criação, não mais o dedo de deus, nem o dedo do homem, mas o dígito da máquina, insone e liberto, autônomo e ousado, castrador das últimas libertinagens onde se encastelava a subjetividade sitiada do escritor.
Porém (e sempre tem um porém, como dizia Plínio Marcos, em tempos idos), no lado do pensador -- aquele que busca coser suas impressões à vestimenta de sua razão --, a logomáquina se traduz na construção de uma nova heurística. Longe de se impor ao pensamento como maquinário já pronto e acabado, como esquema e percurso de raciocínios já otimizados pelo crivo da produtividade imediatista, o computador está nos dando novas formas de pensar. E nesses novos pensares, não se inaugura um novo homem, mas se dá voz e curso a latências lógicas que se sedimentaram nestes últimos milênios, latências que sempre fizeram do humano não uma espécie natural, mas uma construção histórica (Merleau-Ponty).
É assim que a máquina digital, artefato tecnologicizado, dá ao escritor a possibilidade de apreciar, na concretude da tela e na virtualidade do texto interativo-iterativo aí produzido, qualidades e estados literários que antes não passavam de insinuação ou desejo. A obra aberta, suspeita teórica, surge como realização imediata, nos poemas que se oferecem ao toque do mouse, em arquivos *.dll chamados à ação a partir de arquivos outros, *.bat ou *.com, e que parecem brotar, irreverentes, de diretórios sempre tão sisudos.
O maquinário digital nos permite, ademais, perpretar uma aproximação antes apenas entrevista: a máquina gera seus eventos -- maternidade do acaso --, que são retomados por nossa intuição geradora: duas maternidades que se ecoam mutuamente no espaço da tela -- geratriz técnico-intuitiva de eventos mais ou menos casuais, dando origem a outras formas de expressão artística, alargando ou inaugurando novo campo de textualidade literária.
Por outro lado, a artemáquina nos faz também recuperar possibilidades antigas, olvidadas pela tecnologização que já se intrometera na fruição do literário (ou será que a invenção da escrita e da imprensa já não contribuíra para um certo adormecimento de possibilidades estéticas da oralidade?). Ao propor realizações iterativamente recorrentes e diferentes de um mesmo (será o mesmo?) poema, a artemáquina surge como concretização imediata e condensada de percursos que se alongavam e se alteravam na voz de jograis e menestréis.
A questão que se coloca, então, pode ser justamente a da literariedade dessa produção. Dito de outro modo, será que estamos inaugurando nova literatura ou outra forma do literário? Testemunhamos o surgimento de uma nova expressão -- totalmente nova, surgida do grau zero da invenção --, ou acompanhamos a apropriação, pelo literário, de nova superfície significante?
Sem carregar a pretensão de avançar na resposta (limite imposto pela exigüidade do artigo e aceito com alívio por este escriba), direi apenas que, até o momento, boa parte das diferenças que se apontam entre o livro de papel e a tela do computador não implicam uma diferença de substância entre artefato impresso e artemáquina digitalizada.
Diferenças, essenciais ao menos, não parecem existir na maneira como se produzem e jorram significações: do mesmo modo que na tela real do computador, a leitura de um texto impresso implica um ato performativo, uma interatividade imediata com a intencionalidade do leitor, interatividade que é feita, nos dois casos, por uma castração da arbitrariedade máxima possível do leitor, pela coerência própria e dinâmica do objeto literário que se desenvolve diante de nós (seja na tela real do computador, seja no espaço virtual de nossa linguagem).
Do mesmo modo, diz-se que a artemáquina literária implicaria inevitavelmente uma irreprodutibilidade da experiência individual de leitura: a cada performance da máquina, a iteratividade levaria essa textualidade lítero-lógica a posicionar-se numa outra região do espaço multi-significativo, tornando irrecuperáveis as posições ocupadas em performances anteriores. Ora, nenhuma leitura que fazemos (esteja ela em tela, esteja isso impresso em papel) se dá totalmente, em absoluta transparência, a outros leitores. Ao contrário, é justamente por fundar-se na diferença, na alteridade, que cada leitura pode dialogar com as outras e instalar-se, com elas, no espaço comum da linguagem: é marcando sua diferença mutualmente irredutível que o espaço das diferentes leituras pode reduzir-se a um diálogo.
No caso das leituras lógico-digitais, será necessário discutir como saem do circuito eletrônico para se inserirem no circuito produtivo das formas culturais. Trata-se de investigar como essa possivelmente nova textualidade artemaquínica dá voz e imagem (sentido, portanto) ao espaço das construções intersubjetivas, intertextuais, inter(intra)disciplinares, retomando e/ou reforçando procedimentos e processos arcaicos (literatura na voz) e antigos (literatura no papel). No caso, o que está em jogo é a virtualidade desse objeto: seria tal virtualidade logimaquínica essencial e substantiva, ao contrário do mero texto papelizado? Na tela, as etapas de concretização do objeto se apagam, de maneira que ele se dê a ver como percurso sempre virtual, apoiado em instantes concretos, mas que se deletam ao longo da construção. Ora, pondo de lado as ilusões de alguns estudiosos manuscribas, não é nenhum exagero propor que o texto impresso carrega também uma virtualidade essencial e substantiva, não do mesmo grau, não do mesmo instante -- talvez --, mas do mesmo gênero que aquela da tela imágica do computador.
Daí segue, de imediato, que, mesmo a figura do autor, imagem contestada e discutida quando se trata da textualidade informática, mais aproxima que separa as duas formas de textualidade: se a instabilidade do texto i(n)terativo da artemáquina coloca em suspenso (ou multiplica indefinidamente) a sua autoralidade, a autoria do texto no papel, também ela, não se confunde nunca com a singularidade do escritor empírico, e se derrama em perspectivas várias, geradas a partir das leituras várias que nos permite o texto. Em ambos os casos, em suma, trata-se de conclamar o leitor a dialogar com uma perspectiva outra, que não a sua, chamada então a interferir na organização do espaço de sentidos do texto, perspectiva que, ao ser chamada de autor, deve virtualizar (dinamizar) ainda mais as significações que se outorga a leitura.
Todavia, entre a textualidade da artemáquina e o artefato literário lido no papel, diferenças há, e, se não tratei aqui delas, foi por voluntária escolha. Para que sejam lidas (também elas) a partir dessas aproximações inaugurais. Ao menos, pela simples constatação de que ao campo do literário é dado não se apequenar dentro da máquina. Não necessariamente.
Saliente-se, ainda, que a barroquidade de meu texto -- todo ele feito em computador -- foi expressividade assumida de-propósito: manifesta-se aí que o prazer, advindo da artemáquina, é possível, sem ser maquinal.
Alckmar Luiz dos Santos é Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Etudes Littéraires, Université Paris 7, orientação de Julia Kristeva, 1993. Mestre em Teoria Literária, UNICAMP, orientação de Suzi Sperber, 1989. Graduação em Engenharia Eletrônica, UNICAMP, 1983.
E-mail: alckmar@cce.ufsc.br